Caminhos de Santiago da Geira e dos Arrieiros(2ª Etapa Caldelas - Campo do Gerez)
near Caldelas, Braga (Portugal)
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Itinerary description
Conheci Caldelas quando um afinidado e já finado tio às termas vinha para cura dos tormentos da vesícula. Não mudou muito porque a frescura e encanto que existiam sinto-os de igual modo.
Pernoitámos no Albergue de Santiago. A antiga escola alberga agora saberes e serviços que não os do mestre-escola, do professor primário ou do professor de 1º ciclo que aqui abriram o mundo do conhecimento a tantas quantas as crianças que na memória destas paredes estariam, tivessem as paredes capacidade de lembrar quem entre elas se sentou.
Saímos cedo na esperança de vencer a subida inicial antes da agrura do calor. «É hora e meia a subir. Depois é um longo planalto.» havia-nos dito alguém que conhece bem o Caminho. Afinal tão cedo não é porque já bule na vila, a esta hora, mais gente que supunha. Entramos no Café Avenida para o pequeno almoço que só será aviado, e bem, depois da simpática balconista servir meia dúzia de raspadinhas a duas, provavelmente viciadas, senhoras. Saímos. Cá fora há um pequeno mercado de fruta e legumes. Fica-nos no olhar o desejo de ali mercar a fruta mas somos dissuadidos pelo peso que a mochila já tem. Subimos a R. Padre João Martins de Freitas, figura proeminente na arquitetura da vila e descobertas arqueológicas da citânia de S. Julião e outras, em direção à igreja de Santiago.
Como habituados estamos já, as portas fechadas negam-nos acesso ao interior. Olhamos a fachada barroca. Na verga lê-se 1749. Decerto será a data de construção deste templo mas outro aqui terá existido. Digo-o porque ontem, quando procurava informação sobre esta igreja encontrei o texto que transcrevo:
“Francisco Borges, morador na rua do campo, Sé (casou na igreja de Caldelas, Cividade, Santiago, a 2.6.1631, com Ana de Aguiar, ... ... com licença do Padre Antonio de Araujo, cura da Santa Sé e do reitor de Caldelas, Entre Homem e Cavado, que celebrou)”.
Haveria então já em 1631 uma igreja em Caldelas cujo orago era Santiago.
Numa edícula sobre as volutas que coroam o portal, Santiago Peregrino continua a afirmar-se como patrono dos caldelenses. Ladeiam-no duas janelas com vitrais que se adivinham belíssimos. Demoro-me e a minha companheira não espera. Seguem meus passos no seu encalço mas o espírito viaja ao passado visitando as termas e a história.
Duas fontes termais de caldas águas existiriam já em tempos do império que de Roma as terras brácaras invadiu. Dizem-no as duas epigrafadas aras descobertas aquando das obras realizadas junto às nascentes. Simples votos às ninfas das milagrosas águas que testemunham o efeito do seu uso para alívio das maleitas do corpo.
Tão claro é que foram estas pequenas fontes de águas quentes que estiveram na origem do topónimo Caldelas. É, não é?... pois é mas… o povo adora lendas e uma há muito antiga que contraria este corolário. “De qual delas devo beber?...” perguntou o recém chegado sofredor que nas águas procurava cura. Não conta o povo que resposta teve mas que na ingénua demanda o nome terá tido origem. Diz-se, porém, que a popular imaginação foi beber a originalidade não às fontes minero-medicinais mas a um documento datado de 1528 em que o escrivão decidiu “escrevinhar” o nome da povoação com a grafia “Qualdellas". Poucos saberiam ler no séc XVI, quem teria então criado a lenda?... pergunta sem resposta. Vamos lá, caminha.
Passando jardins floridos, altos muros de granito e velhas casas alpenduradas nas encostas verdejantes onde, orgulhosos do seu passado mas tementes do futuro, se exibem velhos espigueiros que tanto pão amadureceram, vamos abandonando a urbe em direção à serra.
No fundo do vale do Alvito, corre o ribeiro homónimo de vegetação exuberante ladeado. Ao longe ergue-se a Serra de S. Pedro Fins. Chilreiam pássaros e uma leve brisa agita a ramagem. O pio estridente de um melro assustado com a nossa inesperada presença assusta-nos a imaginação que por terras e montes, que ao longe vão pincelando a paisagem, vai vagueando.
À nossa frente temos agora um casarão apalaçado. A estrada de asfalto termina aqui. Os edifícios à esquerda e à frente estão em deplorável estado de conservação. É a Casa de Real. Triste, envelhecendo em ruína, chora a história de vidas vividas, de esperanças, lágrimas e frustrações. “Alguém” regressado do Brasil, para onde havia emigrado muito jovem, senhor de uma fortuna considerável, conseguida no comércio (ou produção?) de cana e café, filho de agricultores de quem herdou a paixão da terra, adquire ou herda as propriedades ao redor, planta uma das maiores vinhas de vinho verde da região e constrói junto dela esta mansão. Li que encomendou vasilhas de vidro de 200 litros na Marinha Grande e sistemas mecânicos para a produção do vinho manifestando um espírito empreendedor que justifica a fortuna acumulada.
Passamos o arco que, por baixo da habitação, dá acesso à Quinta da Vinha. Por aqui terão passado trabalhadores, carros de bois com dornas cheias de uvas ou carroças com barricas de vinho e, quem sabe?..., o Berliet de 40 cavalos de 1904 ou o Panhard Levassor de 1909 que o fundador desta casa terá possuído e conduzido quando outros automóveis ainda não havia na região.
Vi imagens da exuberância e beleza do interior e olho agora, com tristeza e pena, as desoladas desvidradas janelas de caixilhos apodrecidos e medito no efémero momento que a vida é e do quanto valem riquezas para além da vida. O construtor deste património não teve filhos. Apadrinhou sobrinhos que, quando herdeiros, não se entenderam e deixaram ruir o que com amor, desvelo e trabalho foi construído por alguém merecedor de recordado ser depois de este mundo ter deixado. Não creio que venha a ser recuperado este património, tão pouco a memória de quem o edificou.
Meditativo vou, caminhando ao longo do grande muro, quase alheio à beleza deste caminho. Sacudo da mente a Casa de Real e dedico a minha atenção à harmónica sinfonia da natureza. Lá em baixo o Ribeiro do Alvito canta baixinho, gorjeiam os pássaros nas copas das árvores afagadas pelo vento e as borboletas à nossa frente valsam numa dança errática que apenas a brisa entende. Serena meu espírito a mão da minha companheira agora que o caminho alargou um pouco.
Por irregular calçada, ao jeito das que romanas ou medievais foram, e subindo se chega a Covas. Um espigueiro por cima do portão ponteia a entrada de um antigo casal. Depois vem um prado com flores amarelejando o verde vale. Depois o tanque da bica onde os jarros se tornaram aquáticos e sobrevivem floridos. Depois a nascente de água cristalina que as pedras faz cantar, talvez pelo prazer sentido da terna frescura que as acaricia na manhã estival que se faz sentir. E depois o cansativo asfalto serra acima. Puxando as pernas que nos levam, cá vamos.
À nossa direita um remoçado espigueiro recorda o tempo em que a Casa Rural do Rancho em Paranhos era só isso: rural. Tem agora uma turística beleza de pedras lavadas que faz esquecer os tempos árduos de labuta contínua e quantas vezes infrutífera.
Aplana a estrada, saúda-nos o vermelho vivo das flores do rododendro num belo jardim e… acho que a hora e meia de subida acabou aqui depois de duas horas. É assim, por vezes a distância se mede em metros outras por tempo.
A M535-3 vem-nos cansando os pés há demasiado tempo. Chegamos a Santa Cruz e, finalmente, encontramo-nos com a Geira a caminho da milha XIV que marcada terá sido um pouco mais à frente. Treze milhas e tal teriam caminhado os romanos para aqui chegar. Milhas?... normalmente abreviada por m.p. (mille passuum) era exatamente isso: um milhar de passos. Os legionários em deslocação, a cada mil passos colocavam uma estaca, mais tarde um marco, normalmente epigrafado com o número da milha e uma dedicatória ao imperador, que via assim o seu poder reconhecido. Mas há passos, passinhos e passões conforme o comprimento da perna do contador e o perfil do caminho. A subir o passo é curto… ou será a descer?... bem, não são iguais, pois não?... ora, para resolver o problema das milhas curtas ou longas, no ano 29 DC, o Imperador Agripa decidiu que as milhas passariam a ser sempre iguais. Nada melhor para estabelecer a medida que o comprimento do seu pé. Assim decretou que um passo mediria cinco pés dos seus e a milha passaria a ser nada mais nada menos que 5.000 pés, ou seja, continuaria a ser mil passos, não os do medidor mas os do Imperador Marco Vipsânio Agripa. E quanto media o pé de Agripa?... 29,6 cm! Que patorra!... se fosse hoje calçava o 46. Mas, para além de ter o pé grande, o homem devia ser gigante. Então, se o passo tinha 5 pés e o pé 29,6 cm, o passo tinha 148 cm, chiça penico!... quase o dobro do meu!...
Quebro o pensamento e as contas de sapateiro quando os meus olhos tropeçam neste legionário, plasmado no ferrugento metal, colocado à beira de um fragmento de miliário, de gládio na mão e escudo em posição de defesa. Dá a ideia que a Via Nova foi construída para movimentação das legiões em guerra. Mas a Gallaecia estava dominada e pacificada desde o ano 19 e a construção da Via Nova data do último quartel do século I. Com galaicos, brácaros e astures romanizados (ou quase) havia que cuidar dos valores romanos sobretudo aqueles que saiam da intensa mineração em Las Médulas e nos montes Asturianos. Mas mais, servia a Geira o Cursus Publicus, serviço de correio do império. Pela Geira passavam soldados, mercadorias, ouro e mensagens.
Olho as abandonadas casas de pedra velha que espalhadas à volta contam histórias de árdua labuta, isolamento e abandono. Falam mais as pedras que o ferroso legionário. Quem sabe se por aqui moraram alguns dos que à Via Nova “jeira” chamaram porque nos trabalhos da via “à jeira” eram pagos?... porque raio me lembrei agora disto lo?... esta foi uma interpretação que eu li sobre o projeto “Geira" que, via facebook, alguém que ao projeto está ligado “postou". Podia ter ficado por aqui mas não. Desconfiado (que raio de feitio) e insaciável quis mais saber e… onde me fui meter?... Como é que o topónimo Geira aparece se Via Nova se chamava?... seria estrada da Geira (ou Jeira) um topónimo popular com Gerês relacionado?... Desde a simplicidade do que li no facebook, e recordei quando aqui chegado fui, e a complicada e indigesta teoria etimológica de Edelmiro Bascuas em “Aquis Ocerensis, Diosa Ocaera, Monte Ugeres y o Gerês: *Oger- o *Uger?”, que de acordo está com o que Jorge Alarcão defende, de que quer o nome Geira quer o nome Gerês têm origem no teónimo Ocaera, deusa provavelmente desconhecida no reino de Júpiter…
Interrompe-me o pensamento o aparecimento de uma plantação de miliários. Estamos na Bouça do Padreiro, lugar da milha XIV a contar de Braga. São sete os miliários aqui plantados, 4 inteiros e 3 fragmentos. Acho que quem vê pode questionar-se: —Porquê tantos?... um não era suficiente?... — A minha “bíblia” das Vias Romanas, o site viasromanas.pt, já me tinha respondido a estas e muitas outras questões sobre a Geira quando preparei o caminho. Agora vou reavivando a memória sempre que tenho rede, coisa escassa por estes montes e vales. Então é assim: sempre que um novo imperador havia, imperava por aqui uma vontade de lhe prestar homenagem se ele por este caminho alguma coisa fazia, por exemplo uma reparação ou melhoramento da via. Aqui foram epigrafados num dos miliários os nomes de Tito e Domiciano, noutro o de Caracala, noutro o de Décio e no quarto o de Magnêncio. Dos sete miliários dois são anepígrafos e num dos fragmentos consegue-se ler a distância a Braga.
A minha companheira continua e eu deixo os graníticos cilindros onde tentava perceber, por apalpação, o que os olhos não veem e que no site leram e marcho em acelerado passo para a alcançar.
Se o piso da via fosse a do caminho que agora nossos pés pisam nada custaria a crer que carros carregados, exércitos montados e apeados ou bestas transportando toda a espécie de bens necessários a populações, legiões e trabalhadores, por aqui passassem com facilidade, mas este troço da Geira sofreu modificações para que o povo de Santa Cruz tanto não sofresse nas deslocações a Terras do Bouro.
Os olhos distraem-se passeando longe pela beleza da paisagem enquanto os pés não têm que se preocupar com a rudeza do caminho. Saímos da CM1265 por um corte à direita. Informa o sinal que por aqui segue a Geira. Antiga como é, não ficava bem, nem ter se queria, sinalética moderna, pelo que alguém por bem achou sinalizar a Geira com o mesmo ferrugento metal de que foi feito o legionário que na portela de Santa Cruz encontrámos. Cá para mim novos graníticos miliários (ou quilometrários) que enaltecessem os novos imperadores deste reino muito mais bem (melhor não seria o termo) condiriam com este monumento nacional. A matéria prima não falta por aqui e quem bata com a cabeça na pedra também não. Pronto!... cá está o mau feitio a desfeitear a obra feita. Mais esperto que os outros não és, por isso aceita, não penses e segue. Se não queres ver fecha os olhos. A tolerância para com outros e comigo vai-se desfazendo com o cansaço. A beleza do caminho acentua-se para deleite do espirito ainda que o cuidado seja essencial para não dar de beber às botas. E é assim que chegados somos ao Bico da Geira, onde marcada foi a milha XV. Dois miliários são visíveis. O projeto de Requalificação da Geira, de que fazem parte as ferrugentas figuras e sinalética, colocou um painel transparente com a explicação do sítio. No entanto o ser transparente e a falta de contraste dificulta a leitura por isso confio na minha “bíblia” e sigo em frente porque muito ainda há para andar e o calor começa a apertar. Reentramos no CM1265.
Rapidamente chegamos ao ponto de decisão já decidida há dias: seguir baixando a Terras do Bouro ou subir pela Geira?... e já vamos trilhando o irregular caminho, gasto pelo tempo e pelas gentes, que outrora por legiões, cursos publicus, bestas e azémolas de toda a espécie foi trilhado.
Que maravilha!...Bebendo o verde silêncio da mata, saltitando (então ainda ali atrás cansado e agora saltitando?...) sobre as lages milenares por gentes e tempo puídas, ladeados por muros musgados e esquecidos da idade, vamos deleitados no sabor e saber da história desta via cuja memória se vai aos poucos no tempo escavando.
Chegamos ao Penedo dos Teixugos. In situ, há um miliário, dedicado a Décio, que a distância a Braga testemunha: 16 milhas. Mas se andámos mais que 1700 metros desde que o miliário XV passámos… lá se vai a padronizada “milha imperial de Agripa" e das quatro uma: ou o miliário está deslocado ou os passos foram contados por militar(es) distraído(s) ou o(s) militar(es) não sabiam contar ou… tinham cá um passo!...
A Ribeira da Devesa corta-nos o passo. A água que corre, muita não é mas o suficiente para molhar as botas a gente de passo curto. A via, de novo atapetada de terra batida, chega a S. Sebastião da Geira e nós com ela. Um agradável parque de merendas convida a que arreemos as mochilas e merendemos um pouco do que nelas trazemos. A figura ferrosa do legionário que a este espaço montou guarda empunha o pilo (pillum), apoia-se no escudo (scutum), coitado, está cansado e ferrugento, e à cinta tem o gládio (glaudius) e o púgio (pugio). Estamos protegidos. Eis que somos surpreendidos pelo esvoaçar de um pequeno melro que nas patas não se sustém ainda e levantar voo é para esquecer. Apanho-o e levo-o para o meio do mato, longe de qualquer olhar de gato esfomeado. Rezo-lhe pela alma porque o corpo acho que se não safa. Recomendo ao Legionário que cuide da pobrezita ave. Já que está ali parado que tenha algo com que se entreter.
De novo carregando as mochilas atravessamos a M535 e cá vamos neste romano caminho envolto de beleza minhota. Altos carvalhos, na encosta para lá do velho muro, sombreiam o caminho. Outros terão sido os carvalhos que viram passar por aqui as legiões mas as pedras que pisamos são as mesmas que as cáligas tachonadas dos legionários sentiram.
No Ribeiro das Cabaninhas encontramos a milha XVII. Três miliários epigrafados dedicados a Caracala, Décio e Caro. Três nomes preservados para além do tempo que os corpos já esfumou. As pedras em pó se transformarão também um dia, restarão as obras?... de Caracala recorda-se o édito decretando a cidadania romana a todos os habitantes livres do império. De Décio a perseguição aos cristãos que se recusaram a obedecer à ordem de fazer um sacrifício aos deuses romanos obrigatoriamente atestado em “libellus” por um magistrado romano. E Caro?... deste fica a memória das vitórias contra os persas no seu breve reinado de cerca de um ano. Passamos a Ribeira da Igreja escolhendo as pedras onde pôr os pés para não molhar as botas e continuamos por caminho de sonho ladeado à esquerda por muro em pedra solta. A admirável paisagem emudece-nos a imaginação e apaga as palavras que a possam descrever. À beira do caminho ajoelha-se mais uma ferrugenta imagem ilustrando o trabalho numa pedreira que por aqui possa ter existido. Bem, não fora a dita figura do pedreiro e nunca nós diríamos que aqui pudesse ter existido uma pedreira. Várias terão existido ao longo do caminho, isso sabemos.
Grandes penedos errantes se encontram espalhados pela serra e nós passamos entre dois que parecem guardar ou portagear o caminho. A serra é de mato e já passa da uma. O sol queima. O passo reduz de ritmo. A mochila pesa mais e ensopa-nos as costas. O corpo amolece. A garrafa da água vai mais vezes à boca. A milha XVIII ficou para trás e nem dela demos fé. Chã de Vilar ficará por perto. Diz-se que os vestígios espalhados neste povoado poderão corresponder à mansio Salatiana referida no Itinerário de Antonino. Finalmente sombra. A Ribeira da Fecha cascateia cantando. Um canto de puro cristal. Não fora o adiantado da hora e teríamos molhado os pés descalços. Mas não. As botas continuam calçadas e vamos escolhendo as pedras para as não molhar.
Na milha XIX não nos detemos nem imagem registamos. O que o cansaço faz à sede de conhecimento!?... possivelmente porque outra sede aperta e a água já é pouca, o cérebro faz a opção. Passámos o Alto do Falanco e pouco depois a Geira escondeu-se por baixo de um caminho de terra batida que liga Moimenta Nova a Saim.
Penedo dos Ladrões. O topónimo suscita-me histórias dignas de romance do Zé do Telhado. Dois miliários sinalizam a milha XX. Diz-se que um está epigrafado com dedicatória a Carino o outro é anepígrafo. Para mim são ambos.
Mastigo os pormenores do romance imaginado enquanto vou colocando um pé à frente do outro num passo encurtado pelo calor. O calor dilata os corpos e mingua o passo, é o novo corolário da física.
Chegamos ao Lugar de Travassos onde se encontra sinalizada a milha XXI. Há aqui dois miliários. Um suscita a minha curiosidade por se encontrar cortado em forma de banco com encosto. Que lhe terá acontecido?... esta questão povoará a minha imaginação nos próximos minutos. Não fora a bela paisagem e uma figura em ferro (mais uma) sobre um penedo colocada e mentalmente teria escrito outro romance sobre “o miliário talhado em forma de banco". Mas esta figura merece que nela pense. Está longe e não me permite uma mais cuidada análise. Quem por aqui andou a plantar figuras de ferro ferrugento deve ter tido uma qualquer e bem fundamentada razão para aqui ter posto esta. Algo segura na mão esquerda (quem do outro lado observar, a direita dirá que é) que um candeeiro me parece. Na hipótese de a mansio Salaciana ter existido no Lugar de Pontido, aqui bem perto… será que a figura representa um estalajadeiro de candeeiro levantado para guiar os transeuntes?... olho de novo a figura. Agora parece um sacerdote que levantanta a oferta aos deuses. Bolas! Será que alguém há que me explique o que representa esta figura?... aborrecido constato que melhor seria apreciar a paisagem olvidando a ferrosa imagem.
A milha XXII encontra-me de mau humor. Está em Ervosa e de facto assim é. Há ervas por todo o lado e os miliários mal se veem. Adriano ficaria muito chateado se conhecesse o desmazelo em que se encontra o miliário a ele dedicado. Sem tempo nem enxada desisto da vontade de a erva roçar.
À frente uma cancela barra o caminho. O letreiro “É favor manter a cancela fechada / obrigado" diz tudo. Abrimos. Passamos. Fechamos. Seguimos encantados com a beleza do caminho alheios à possibilidade de poder aparecer gado graúdo que nos assuste. Numa zona mais húmida e fresca a via está degradada e houve quem arrumasse as pedras de modo a criar uma passagem do tipo “poldras" que evita que enterremos os pés na lama. Não esquecendo que a Geira é monumento nacional não seria melhor gastar o dinheiro das figuras de ferro na reabilitação destas zonas?... dir-me-ão que não, que assim é que está bem. Está bem, o mundo não cairá enquanto houver quem o equilibre.
Esporões e a milha XXIII. Ganham heras os blocos de granito. Se alguma coisa têm escrito como se lerá?... bem… começa a preocupar-me o mau humor. Vou pensando nisso…
Sem dar importância ao cansaço ou à distância, alternando entre o asfalto das novas vias e a calçada da via nova, saímos das encostas do Homem para as da Ribeira da Roda. Passamos a Quebrada das Cabaninhas, onde a Geira se sumiu encosta abaixo, e depressa chegamos à milha XXIV.
Saímos de um eucaliptal e o sol aperta. Entramos na EN307. Racionamos a água molhando só a boca para minimizar o efeito da sede. Saímos da EN307 e descemos por calçada de paralelos que se dirige a Sá. Crédito não damos à imagem ameaçadora do legionário ferrugento que aqui se encontra e divisamos já um cruzeiro construído sobre um miliário que marca a milha XXV. O miliário foi cristianizado.
Voltamos à EN307 e já ali se vê a placa toponímica de Covide e à frente o que parece ser uma tasca. O ânimo regressou. Entramos num misto de loja de ferragens, loja agrícola, minimercado, café e tasca. — Duas cervejas frescas e uma garrafa de água, por favor.— se mais alguém havia lá dentro nem notei. Fui logo aviado e vim sentar-me no bloco de granito que à porta servia de banco. Dez minutos, se tanto, e as mochilas, que a nosso lado descansaram também, para as costas subiram. Cá vamos…
Entramos na povoação por rua de paralelos. Covide, esquecida aqui na serra, era no início do séc. XX ainda gerida num regime de comunalismo em que o regedor, eleito pelo povo, fazia cumprir o conjunto de usos e costumes que eram lei e que a quem eles não obedecesse uma punição ou multa era aplicada pela “junta", que reunia todas as cabeças de casal, fossem homens ou mulheres. A junta, reunida na Carreira, propunha, discutia e determinava democraticamente a vida da aldeia. E agora?... agora as estradas alcatroadas levam turistas e leis que, provavelmente, pouco têm a ver com a sua realidade e autenticidade deste cantinho da serra. Serão as gentes as mesmas de outrora?... não, claro que não!... há novos nómadas que capitalizam habitações em aldeias típicas, adquiridas por tuta e meia, para alugar a ávidos turistas que tudo descaracterizam. Resta meia dúzia de pessoas genuínas que se identificam com estas serranias.
Sinto a mente suja com este pensar em casas compradas para AL e tento que a minha atenção se vire para as velhas pedras que nos ladeiam o caminho.
A igreja de Santa Marinha, onde chegamos sobre calçada típica e entre muros serranos, limpa-me definitivamente o pensamento. Está esta igreja ligada à lenda de Santa Eufémea, martirizada em Obobriga no século II, à milagrosa descoberta dos seus restos mortais em 1090 e à sua trasladação para Ourense em 1158, onde segundo a tradição permanecem guardadas as santas relíquias. Tento a lenda recordar… ouvi-a quando ainda em Braga vivia e encontrei-a num velho e incrível livro escrito em português arcaico que dá pelo nome “Cuidados da morte e descuidos da vida". Uma pastorinha encontra um braço que da terra saía com um brilhante e irresistível anel. Surripia a pequena o anel ao dedo e logo se queda muda. Conta, por gestos e sinais, ao pai onde encontrou tão precioso objeto O pai, curioso e receoso, junta os amigos e dirigem-se ao (mais não me permite escrever o Wikiloc)...
Pernoitámos no Albergue de Santiago. A antiga escola alberga agora saberes e serviços que não os do mestre-escola, do professor primário ou do professor de 1º ciclo que aqui abriram o mundo do conhecimento a tantas quantas as crianças que na memória destas paredes estariam, tivessem as paredes capacidade de lembrar quem entre elas se sentou.
Saímos cedo na esperança de vencer a subida inicial antes da agrura do calor. «É hora e meia a subir. Depois é um longo planalto.» havia-nos dito alguém que conhece bem o Caminho. Afinal tão cedo não é porque já bule na vila, a esta hora, mais gente que supunha. Entramos no Café Avenida para o pequeno almoço que só será aviado, e bem, depois da simpática balconista servir meia dúzia de raspadinhas a duas, provavelmente viciadas, senhoras. Saímos. Cá fora há um pequeno mercado de fruta e legumes. Fica-nos no olhar o desejo de ali mercar a fruta mas somos dissuadidos pelo peso que a mochila já tem. Subimos a R. Padre João Martins de Freitas, figura proeminente na arquitetura da vila e descobertas arqueológicas da citânia de S. Julião e outras, em direção à igreja de Santiago.
Como habituados estamos já, as portas fechadas negam-nos acesso ao interior. Olhamos a fachada barroca. Na verga lê-se 1749. Decerto será a data de construção deste templo mas outro aqui terá existido. Digo-o porque ontem, quando procurava informação sobre esta igreja encontrei o texto que transcrevo:
“Francisco Borges, morador na rua do campo, Sé (casou na igreja de Caldelas, Cividade, Santiago, a 2.6.1631, com Ana de Aguiar, ... ... com licença do Padre Antonio de Araujo, cura da Santa Sé e do reitor de Caldelas, Entre Homem e Cavado, que celebrou)”.
Haveria então já em 1631 uma igreja em Caldelas cujo orago era Santiago.
Numa edícula sobre as volutas que coroam o portal, Santiago Peregrino continua a afirmar-se como patrono dos caldelenses. Ladeiam-no duas janelas com vitrais que se adivinham belíssimos. Demoro-me e a minha companheira não espera. Seguem meus passos no seu encalço mas o espírito viaja ao passado visitando as termas e a história.
Duas fontes termais de caldas águas existiriam já em tempos do império que de Roma as terras brácaras invadiu. Dizem-no as duas epigrafadas aras descobertas aquando das obras realizadas junto às nascentes. Simples votos às ninfas das milagrosas águas que testemunham o efeito do seu uso para alívio das maleitas do corpo.
Tão claro é que foram estas pequenas fontes de águas quentes que estiveram na origem do topónimo Caldelas. É, não é?... pois é mas… o povo adora lendas e uma há muito antiga que contraria este corolário. “De qual delas devo beber?...” perguntou o recém chegado sofredor que nas águas procurava cura. Não conta o povo que resposta teve mas que na ingénua demanda o nome terá tido origem. Diz-se, porém, que a popular imaginação foi beber a originalidade não às fontes minero-medicinais mas a um documento datado de 1528 em que o escrivão decidiu “escrevinhar” o nome da povoação com a grafia “Qualdellas". Poucos saberiam ler no séc XVI, quem teria então criado a lenda?... pergunta sem resposta. Vamos lá, caminha.
Passando jardins floridos, altos muros de granito e velhas casas alpenduradas nas encostas verdejantes onde, orgulhosos do seu passado mas tementes do futuro, se exibem velhos espigueiros que tanto pão amadureceram, vamos abandonando a urbe em direção à serra.
No fundo do vale do Alvito, corre o ribeiro homónimo de vegetação exuberante ladeado. Ao longe ergue-se a Serra de S. Pedro Fins. Chilreiam pássaros e uma leve brisa agita a ramagem. O pio estridente de um melro assustado com a nossa inesperada presença assusta-nos a imaginação que por terras e montes, que ao longe vão pincelando a paisagem, vai vagueando.
À nossa frente temos agora um casarão apalaçado. A estrada de asfalto termina aqui. Os edifícios à esquerda e à frente estão em deplorável estado de conservação. É a Casa de Real. Triste, envelhecendo em ruína, chora a história de vidas vividas, de esperanças, lágrimas e frustrações. “Alguém” regressado do Brasil, para onde havia emigrado muito jovem, senhor de uma fortuna considerável, conseguida no comércio (ou produção?) de cana e café, filho de agricultores de quem herdou a paixão da terra, adquire ou herda as propriedades ao redor, planta uma das maiores vinhas de vinho verde da região e constrói junto dela esta mansão. Li que encomendou vasilhas de vidro de 200 litros na Marinha Grande e sistemas mecânicos para a produção do vinho manifestando um espírito empreendedor que justifica a fortuna acumulada.
Passamos o arco que, por baixo da habitação, dá acesso à Quinta da Vinha. Por aqui terão passado trabalhadores, carros de bois com dornas cheias de uvas ou carroças com barricas de vinho e, quem sabe?..., o Berliet de 40 cavalos de 1904 ou o Panhard Levassor de 1909 que o fundador desta casa terá possuído e conduzido quando outros automóveis ainda não havia na região.
Vi imagens da exuberância e beleza do interior e olho agora, com tristeza e pena, as desoladas desvidradas janelas de caixilhos apodrecidos e medito no efémero momento que a vida é e do quanto valem riquezas para além da vida. O construtor deste património não teve filhos. Apadrinhou sobrinhos que, quando herdeiros, não se entenderam e deixaram ruir o que com amor, desvelo e trabalho foi construído por alguém merecedor de recordado ser depois de este mundo ter deixado. Não creio que venha a ser recuperado este património, tão pouco a memória de quem o edificou.
Meditativo vou, caminhando ao longo do grande muro, quase alheio à beleza deste caminho. Sacudo da mente a Casa de Real e dedico a minha atenção à harmónica sinfonia da natureza. Lá em baixo o Ribeiro do Alvito canta baixinho, gorjeiam os pássaros nas copas das árvores afagadas pelo vento e as borboletas à nossa frente valsam numa dança errática que apenas a brisa entende. Serena meu espírito a mão da minha companheira agora que o caminho alargou um pouco.
Por irregular calçada, ao jeito das que romanas ou medievais foram, e subindo se chega a Covas. Um espigueiro por cima do portão ponteia a entrada de um antigo casal. Depois vem um prado com flores amarelejando o verde vale. Depois o tanque da bica onde os jarros se tornaram aquáticos e sobrevivem floridos. Depois a nascente de água cristalina que as pedras faz cantar, talvez pelo prazer sentido da terna frescura que as acaricia na manhã estival que se faz sentir. E depois o cansativo asfalto serra acima. Puxando as pernas que nos levam, cá vamos.
À nossa direita um remoçado espigueiro recorda o tempo em que a Casa Rural do Rancho em Paranhos era só isso: rural. Tem agora uma turística beleza de pedras lavadas que faz esquecer os tempos árduos de labuta contínua e quantas vezes infrutífera.
Aplana a estrada, saúda-nos o vermelho vivo das flores do rododendro num belo jardim e… acho que a hora e meia de subida acabou aqui depois de duas horas. É assim, por vezes a distância se mede em metros outras por tempo.
A M535-3 vem-nos cansando os pés há demasiado tempo. Chegamos a Santa Cruz e, finalmente, encontramo-nos com a Geira a caminho da milha XIV que marcada terá sido um pouco mais à frente. Treze milhas e tal teriam caminhado os romanos para aqui chegar. Milhas?... normalmente abreviada por m.p. (mille passuum) era exatamente isso: um milhar de passos. Os legionários em deslocação, a cada mil passos colocavam uma estaca, mais tarde um marco, normalmente epigrafado com o número da milha e uma dedicatória ao imperador, que via assim o seu poder reconhecido. Mas há passos, passinhos e passões conforme o comprimento da perna do contador e o perfil do caminho. A subir o passo é curto… ou será a descer?... bem, não são iguais, pois não?... ora, para resolver o problema das milhas curtas ou longas, no ano 29 DC, o Imperador Agripa decidiu que as milhas passariam a ser sempre iguais. Nada melhor para estabelecer a medida que o comprimento do seu pé. Assim decretou que um passo mediria cinco pés dos seus e a milha passaria a ser nada mais nada menos que 5.000 pés, ou seja, continuaria a ser mil passos, não os do medidor mas os do Imperador Marco Vipsânio Agripa. E quanto media o pé de Agripa?... 29,6 cm! Que patorra!... se fosse hoje calçava o 46. Mas, para além de ter o pé grande, o homem devia ser gigante. Então, se o passo tinha 5 pés e o pé 29,6 cm, o passo tinha 148 cm, chiça penico!... quase o dobro do meu!...
Quebro o pensamento e as contas de sapateiro quando os meus olhos tropeçam neste legionário, plasmado no ferrugento metal, colocado à beira de um fragmento de miliário, de gládio na mão e escudo em posição de defesa. Dá a ideia que a Via Nova foi construída para movimentação das legiões em guerra. Mas a Gallaecia estava dominada e pacificada desde o ano 19 e a construção da Via Nova data do último quartel do século I. Com galaicos, brácaros e astures romanizados (ou quase) havia que cuidar dos valores romanos sobretudo aqueles que saiam da intensa mineração em Las Médulas e nos montes Asturianos. Mas mais, servia a Geira o Cursus Publicus, serviço de correio do império. Pela Geira passavam soldados, mercadorias, ouro e mensagens.
Olho as abandonadas casas de pedra velha que espalhadas à volta contam histórias de árdua labuta, isolamento e abandono. Falam mais as pedras que o ferroso legionário. Quem sabe se por aqui moraram alguns dos que à Via Nova “jeira” chamaram porque nos trabalhos da via “à jeira” eram pagos?... porque raio me lembrei agora disto lo?... esta foi uma interpretação que eu li sobre o projeto “Geira" que, via facebook, alguém que ao projeto está ligado “postou". Podia ter ficado por aqui mas não. Desconfiado (que raio de feitio) e insaciável quis mais saber e… onde me fui meter?... Como é que o topónimo Geira aparece se Via Nova se chamava?... seria estrada da Geira (ou Jeira) um topónimo popular com Gerês relacionado?... Desde a simplicidade do que li no facebook, e recordei quando aqui chegado fui, e a complicada e indigesta teoria etimológica de Edelmiro Bascuas em “Aquis Ocerensis, Diosa Ocaera, Monte Ugeres y o Gerês: *Oger- o *Uger?”, que de acordo está com o que Jorge Alarcão defende, de que quer o nome Geira quer o nome Gerês têm origem no teónimo Ocaera, deusa provavelmente desconhecida no reino de Júpiter…
Interrompe-me o pensamento o aparecimento de uma plantação de miliários. Estamos na Bouça do Padreiro, lugar da milha XIV a contar de Braga. São sete os miliários aqui plantados, 4 inteiros e 3 fragmentos. Acho que quem vê pode questionar-se: —Porquê tantos?... um não era suficiente?... — A minha “bíblia” das Vias Romanas, o site viasromanas.pt, já me tinha respondido a estas e muitas outras questões sobre a Geira quando preparei o caminho. Agora vou reavivando a memória sempre que tenho rede, coisa escassa por estes montes e vales. Então é assim: sempre que um novo imperador havia, imperava por aqui uma vontade de lhe prestar homenagem se ele por este caminho alguma coisa fazia, por exemplo uma reparação ou melhoramento da via. Aqui foram epigrafados num dos miliários os nomes de Tito e Domiciano, noutro o de Caracala, noutro o de Décio e no quarto o de Magnêncio. Dos sete miliários dois são anepígrafos e num dos fragmentos consegue-se ler a distância a Braga.
A minha companheira continua e eu deixo os graníticos cilindros onde tentava perceber, por apalpação, o que os olhos não veem e que no site leram e marcho em acelerado passo para a alcançar.
Se o piso da via fosse a do caminho que agora nossos pés pisam nada custaria a crer que carros carregados, exércitos montados e apeados ou bestas transportando toda a espécie de bens necessários a populações, legiões e trabalhadores, por aqui passassem com facilidade, mas este troço da Geira sofreu modificações para que o povo de Santa Cruz tanto não sofresse nas deslocações a Terras do Bouro.
Os olhos distraem-se passeando longe pela beleza da paisagem enquanto os pés não têm que se preocupar com a rudeza do caminho. Saímos da CM1265 por um corte à direita. Informa o sinal que por aqui segue a Geira. Antiga como é, não ficava bem, nem ter se queria, sinalética moderna, pelo que alguém por bem achou sinalizar a Geira com o mesmo ferrugento metal de que foi feito o legionário que na portela de Santa Cruz encontrámos. Cá para mim novos graníticos miliários (ou quilometrários) que enaltecessem os novos imperadores deste reino muito mais bem (melhor não seria o termo) condiriam com este monumento nacional. A matéria prima não falta por aqui e quem bata com a cabeça na pedra também não. Pronto!... cá está o mau feitio a desfeitear a obra feita. Mais esperto que os outros não és, por isso aceita, não penses e segue. Se não queres ver fecha os olhos. A tolerância para com outros e comigo vai-se desfazendo com o cansaço. A beleza do caminho acentua-se para deleite do espirito ainda que o cuidado seja essencial para não dar de beber às botas. E é assim que chegados somos ao Bico da Geira, onde marcada foi a milha XV. Dois miliários são visíveis. O projeto de Requalificação da Geira, de que fazem parte as ferrugentas figuras e sinalética, colocou um painel transparente com a explicação do sítio. No entanto o ser transparente e a falta de contraste dificulta a leitura por isso confio na minha “bíblia” e sigo em frente porque muito ainda há para andar e o calor começa a apertar. Reentramos no CM1265.
Rapidamente chegamos ao ponto de decisão já decidida há dias: seguir baixando a Terras do Bouro ou subir pela Geira?... e já vamos trilhando o irregular caminho, gasto pelo tempo e pelas gentes, que outrora por legiões, cursos publicus, bestas e azémolas de toda a espécie foi trilhado.
Que maravilha!...Bebendo o verde silêncio da mata, saltitando (então ainda ali atrás cansado e agora saltitando?...) sobre as lages milenares por gentes e tempo puídas, ladeados por muros musgados e esquecidos da idade, vamos deleitados no sabor e saber da história desta via cuja memória se vai aos poucos no tempo escavando.
Chegamos ao Penedo dos Teixugos. In situ, há um miliário, dedicado a Décio, que a distância a Braga testemunha: 16 milhas. Mas se andámos mais que 1700 metros desde que o miliário XV passámos… lá se vai a padronizada “milha imperial de Agripa" e das quatro uma: ou o miliário está deslocado ou os passos foram contados por militar(es) distraído(s) ou o(s) militar(es) não sabiam contar ou… tinham cá um passo!...
A Ribeira da Devesa corta-nos o passo. A água que corre, muita não é mas o suficiente para molhar as botas a gente de passo curto. A via, de novo atapetada de terra batida, chega a S. Sebastião da Geira e nós com ela. Um agradável parque de merendas convida a que arreemos as mochilas e merendemos um pouco do que nelas trazemos. A figura ferrosa do legionário que a este espaço montou guarda empunha o pilo (pillum), apoia-se no escudo (scutum), coitado, está cansado e ferrugento, e à cinta tem o gládio (glaudius) e o púgio (pugio). Estamos protegidos. Eis que somos surpreendidos pelo esvoaçar de um pequeno melro que nas patas não se sustém ainda e levantar voo é para esquecer. Apanho-o e levo-o para o meio do mato, longe de qualquer olhar de gato esfomeado. Rezo-lhe pela alma porque o corpo acho que se não safa. Recomendo ao Legionário que cuide da pobrezita ave. Já que está ali parado que tenha algo com que se entreter.
De novo carregando as mochilas atravessamos a M535 e cá vamos neste romano caminho envolto de beleza minhota. Altos carvalhos, na encosta para lá do velho muro, sombreiam o caminho. Outros terão sido os carvalhos que viram passar por aqui as legiões mas as pedras que pisamos são as mesmas que as cáligas tachonadas dos legionários sentiram.
No Ribeiro das Cabaninhas encontramos a milha XVII. Três miliários epigrafados dedicados a Caracala, Décio e Caro. Três nomes preservados para além do tempo que os corpos já esfumou. As pedras em pó se transformarão também um dia, restarão as obras?... de Caracala recorda-se o édito decretando a cidadania romana a todos os habitantes livres do império. De Décio a perseguição aos cristãos que se recusaram a obedecer à ordem de fazer um sacrifício aos deuses romanos obrigatoriamente atestado em “libellus” por um magistrado romano. E Caro?... deste fica a memória das vitórias contra os persas no seu breve reinado de cerca de um ano. Passamos a Ribeira da Igreja escolhendo as pedras onde pôr os pés para não molhar as botas e continuamos por caminho de sonho ladeado à esquerda por muro em pedra solta. A admirável paisagem emudece-nos a imaginação e apaga as palavras que a possam descrever. À beira do caminho ajoelha-se mais uma ferrugenta imagem ilustrando o trabalho numa pedreira que por aqui possa ter existido. Bem, não fora a dita figura do pedreiro e nunca nós diríamos que aqui pudesse ter existido uma pedreira. Várias terão existido ao longo do caminho, isso sabemos.
Grandes penedos errantes se encontram espalhados pela serra e nós passamos entre dois que parecem guardar ou portagear o caminho. A serra é de mato e já passa da uma. O sol queima. O passo reduz de ritmo. A mochila pesa mais e ensopa-nos as costas. O corpo amolece. A garrafa da água vai mais vezes à boca. A milha XVIII ficou para trás e nem dela demos fé. Chã de Vilar ficará por perto. Diz-se que os vestígios espalhados neste povoado poderão corresponder à mansio Salatiana referida no Itinerário de Antonino. Finalmente sombra. A Ribeira da Fecha cascateia cantando. Um canto de puro cristal. Não fora o adiantado da hora e teríamos molhado os pés descalços. Mas não. As botas continuam calçadas e vamos escolhendo as pedras para as não molhar.
Na milha XIX não nos detemos nem imagem registamos. O que o cansaço faz à sede de conhecimento!?... possivelmente porque outra sede aperta e a água já é pouca, o cérebro faz a opção. Passámos o Alto do Falanco e pouco depois a Geira escondeu-se por baixo de um caminho de terra batida que liga Moimenta Nova a Saim.
Penedo dos Ladrões. O topónimo suscita-me histórias dignas de romance do Zé do Telhado. Dois miliários sinalizam a milha XX. Diz-se que um está epigrafado com dedicatória a Carino o outro é anepígrafo. Para mim são ambos.
Mastigo os pormenores do romance imaginado enquanto vou colocando um pé à frente do outro num passo encurtado pelo calor. O calor dilata os corpos e mingua o passo, é o novo corolário da física.
Chegamos ao Lugar de Travassos onde se encontra sinalizada a milha XXI. Há aqui dois miliários. Um suscita a minha curiosidade por se encontrar cortado em forma de banco com encosto. Que lhe terá acontecido?... esta questão povoará a minha imaginação nos próximos minutos. Não fora a bela paisagem e uma figura em ferro (mais uma) sobre um penedo colocada e mentalmente teria escrito outro romance sobre “o miliário talhado em forma de banco". Mas esta figura merece que nela pense. Está longe e não me permite uma mais cuidada análise. Quem por aqui andou a plantar figuras de ferro ferrugento deve ter tido uma qualquer e bem fundamentada razão para aqui ter posto esta. Algo segura na mão esquerda (quem do outro lado observar, a direita dirá que é) que um candeeiro me parece. Na hipótese de a mansio Salaciana ter existido no Lugar de Pontido, aqui bem perto… será que a figura representa um estalajadeiro de candeeiro levantado para guiar os transeuntes?... olho de novo a figura. Agora parece um sacerdote que levantanta a oferta aos deuses. Bolas! Será que alguém há que me explique o que representa esta figura?... aborrecido constato que melhor seria apreciar a paisagem olvidando a ferrosa imagem.
A milha XXII encontra-me de mau humor. Está em Ervosa e de facto assim é. Há ervas por todo o lado e os miliários mal se veem. Adriano ficaria muito chateado se conhecesse o desmazelo em que se encontra o miliário a ele dedicado. Sem tempo nem enxada desisto da vontade de a erva roçar.
À frente uma cancela barra o caminho. O letreiro “É favor manter a cancela fechada / obrigado" diz tudo. Abrimos. Passamos. Fechamos. Seguimos encantados com a beleza do caminho alheios à possibilidade de poder aparecer gado graúdo que nos assuste. Numa zona mais húmida e fresca a via está degradada e houve quem arrumasse as pedras de modo a criar uma passagem do tipo “poldras" que evita que enterremos os pés na lama. Não esquecendo que a Geira é monumento nacional não seria melhor gastar o dinheiro das figuras de ferro na reabilitação destas zonas?... dir-me-ão que não, que assim é que está bem. Está bem, o mundo não cairá enquanto houver quem o equilibre.
Esporões e a milha XXIII. Ganham heras os blocos de granito. Se alguma coisa têm escrito como se lerá?... bem… começa a preocupar-me o mau humor. Vou pensando nisso…
Sem dar importância ao cansaço ou à distância, alternando entre o asfalto das novas vias e a calçada da via nova, saímos das encostas do Homem para as da Ribeira da Roda. Passamos a Quebrada das Cabaninhas, onde a Geira se sumiu encosta abaixo, e depressa chegamos à milha XXIV.
Saímos de um eucaliptal e o sol aperta. Entramos na EN307. Racionamos a água molhando só a boca para minimizar o efeito da sede. Saímos da EN307 e descemos por calçada de paralelos que se dirige a Sá. Crédito não damos à imagem ameaçadora do legionário ferrugento que aqui se encontra e divisamos já um cruzeiro construído sobre um miliário que marca a milha XXV. O miliário foi cristianizado.
Voltamos à EN307 e já ali se vê a placa toponímica de Covide e à frente o que parece ser uma tasca. O ânimo regressou. Entramos num misto de loja de ferragens, loja agrícola, minimercado, café e tasca. — Duas cervejas frescas e uma garrafa de água, por favor.— se mais alguém havia lá dentro nem notei. Fui logo aviado e vim sentar-me no bloco de granito que à porta servia de banco. Dez minutos, se tanto, e as mochilas, que a nosso lado descansaram também, para as costas subiram. Cá vamos…
Entramos na povoação por rua de paralelos. Covide, esquecida aqui na serra, era no início do séc. XX ainda gerida num regime de comunalismo em que o regedor, eleito pelo povo, fazia cumprir o conjunto de usos e costumes que eram lei e que a quem eles não obedecesse uma punição ou multa era aplicada pela “junta", que reunia todas as cabeças de casal, fossem homens ou mulheres. A junta, reunida na Carreira, propunha, discutia e determinava democraticamente a vida da aldeia. E agora?... agora as estradas alcatroadas levam turistas e leis que, provavelmente, pouco têm a ver com a sua realidade e autenticidade deste cantinho da serra. Serão as gentes as mesmas de outrora?... não, claro que não!... há novos nómadas que capitalizam habitações em aldeias típicas, adquiridas por tuta e meia, para alugar a ávidos turistas que tudo descaracterizam. Resta meia dúzia de pessoas genuínas que se identificam com estas serranias.
Sinto a mente suja com este pensar em casas compradas para AL e tento que a minha atenção se vire para as velhas pedras que nos ladeiam o caminho.
A igreja de Santa Marinha, onde chegamos sobre calçada típica e entre muros serranos, limpa-me definitivamente o pensamento. Está esta igreja ligada à lenda de Santa Eufémea, martirizada em Obobriga no século II, à milagrosa descoberta dos seus restos mortais em 1090 e à sua trasladação para Ourense em 1158, onde segundo a tradição permanecem guardadas as santas relíquias. Tento a lenda recordar… ouvi-a quando ainda em Braga vivia e encontrei-a num velho e incrível livro escrito em português arcaico que dá pelo nome “Cuidados da morte e descuidos da vida". Uma pastorinha encontra um braço que da terra saía com um brilhante e irresistível anel. Surripia a pequena o anel ao dedo e logo se queda muda. Conta, por gestos e sinais, ao pai onde encontrou tão precioso objeto O pai, curioso e receoso, junta os amigos e dirigem-se ao (mais não me permite escrever o Wikiloc)...
Waypoints
Photo
489 ft
Paramos a cada passo na base de cascatas verdes ou perdendo o olhar em serras tocando o céu
Photo
1,269 ft
A Cruz abençoando a deslumbrante paisagem que se estende vale abaixo (miradouro do Cruzeiro das Lages)
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