Caminho de Santiago da Geira e dos Arrieiros (5ª Etapa Castro Laboreiro-Cortegada)
near Vila, Viana do Castelo (Portugal)
Viewed 37 times, downloaded 8 times
Trail photos
Itinerary description
Saímos do Miracastro e logo ali, mirando o velho castelo, está o novíssimo monumento votado, mais que dedicado, à Mulher Castreja.
Vou até ao miradouro. Olho o vale que se estende à minha frente até ao Mareco e por onde, penosamente afrontados pelo calor, ontem subimos. À esquerda, lá em cima, está o castelo. Ontem ainda fomos até lá. No caminho encontrámo-nos com outro novíssimo monumento. Este é dedicado a quem dedicado é: o Cão da raça Castro Laboreiro. O orgulho que os castrejos têm no “seu Cão” consubstancia-se no Concurso de Cães de Castro Laboreiro que há mais de cem anos se realiza, antigamente em outubro, agora em meados de agosto. E, para provar esse orgulho, aqui está este monumento. Não digo que gosto, tão pouco que desgosto, mas um cão que tem tantas características que o diferenciam porquê reduzir a representação a uma cabeça?... e porquê prateada?... acredito que haja explicação, talvez até seja meu defeito de mau entendedor de arte, mas não aprecio o que não entendo ou que, mesmo não entendendo, me não sensibiliza. Bem, talvez seja instangramável. «Então, vamos lá, não percamos a oportunidade de aqui tirar uma “selfie”». Dissemos e concretizámos mas ficou tão mazinha…
Depois subi lá acima. Nunca o tinha feito antes. À noite li a história deste castelo. Valeu a pena.
Demos uma volta à aldeia. Recordo ter lido que, segundo uma antiga lenda, terá sido no final do sec. X que São Rosendo de Celanova fundou a vila e a sua igreja. O primeiro templo terá sido românico. Olhei-a para tentar encontrar vestígios dessa época, mas nada encontrei, talvez seja inépcia minha porque me recordo de ter lido que esses vestígios ainda são visíveis. A primeira referência à igreja de Castro Laboreiro aparece nas inquirições de 1258, no reinado de D. Afonso III. Em 1641 os espanhóis incendiaram-na mas terá sido rapidamente reconstruída. Será esse o templo onde decidimos entrar e que foi de invocação da Visitação de Santa Isabel e hoje é a Igreja de Santa Maria da Visitação. Entrámos porque em outra visita não houvéramos oportunidade de o fazer. O templo acolheu-nos num silêncio e agradável obscuridade. Uma breve oração elevou-nos o espírito e predispôs-nos para a observação do interior. Na lateral do lado esquerdo encontrámos uma porta aberta para um pequeno museu. Ficámos encantados e mais me vedo eu de dizer. Uma descrição do templo e sua história pode encontrar-se em monumentos.gov.pt já que está classificada como IIP.
Agora, enquanto percorremos a N202-3, olvidando o que construído para aqui está, regressa o pensamento à memória das que o “monumento à Mulher Castreja” inspiraram.
No inverno, difusa nas faldas baixas dos montes, a mulher castreja, coberta de burel escuro, capa prá cabeça, de outro agasalho não precisando, pastoreia o gado na inverneira. No verão, com seu fiel amigo, o Castro Laboreiro, e gado seu e de vizinhos campeia por campinas, chãs e lameiras, brandas onde os rios nascem e o céu se funde. Guarda o gado e o gado guarda-a a ela. Fala a cada rês como fala com o seu cão. Conhecem-lhe os segredos porque segredos não tem. Mapeiam-lhe os olhos todos os carreiros que riscam os montes, conhece-os por nomes herdados de tempos que o tempo há muito esqueceu.
Pensei no passado e redigi no presente porque ainda as há. Pouquinhas, mesmo pouquinhas e de avançada idade. «Aqui?... Duas ó três, senhor. Disso nã vai além. Dantes éramos muuuntas!... desde pequenitas qu'íamos pró monte». Sinais de tempos que o tempo dilui na memória das gentes. "Pequenitas" poucas há por aqui porque aos filhos se procurou dar menos sacrificada vida. O gado continua a subir aos montes mas os métodos e motivação são outros. Que direito temos para desejarmos que de outro jeito fosse?... Ficam os monumentos, memória que hoje ainda são e amanhã talvez pontos de interrogação sejam.
Não tendo seguido pelo sinalizado percurso e tão distraídos vínhamos que não fora terem estas Alminhas, esquecidas entre ervas, a nossa atenção requerido e passaríamos além do ponto de saída da N202-3. Descuidadas jazem estas alminhas, qual lápide de tumba de família antiga. Aqui abandonadas já se não lembram de ver os homens descobrirem-se quando passavam nem escutar o bichanar rezado das mulheres persignando-se vezes sem conta à sua frente. Se Purgatório existe encontram-se assim votadas ao abandono as almas que este simples e modesto templo procurava redimir.
Por rua de novas construções saímos da aldeia. Subimos um niquito por caminho de terra batida, passamos por um marco cruciforme de que não temos nota ou memorando e aqui vamos pela veiga adiante. Encontramo-nos com a Ponte das Veigas no Ribeiro do Porto Seco que seco está justificando o nome. Por aqui passava o antigo caminho que de Melgaço vinha a Castro Laboreiro e o tempo foi esquecendo. Recordamos nós a antiga superstição enraizada nas gentes da terra que, junto a esta ponte, as mulheres prenhes trazia para que batizados fossem os filhos que ainda dentro de si cresciam. Ao primeiro viandante que aqui passasse lhe pediam que água do ribeiro vertessem sobre seus ventres, garantindo deste modo que os nascituros de boa saúde haveriam de nascer.
Continuamos pela veiga adiante olhando ora os penedos da Franqueira ora os picos do Laboreiro para lá deste plano que nos atravessa o olhar. Medito no orónimo. A primeira coisa que me assoma à ideia é associar Laboreiro à palavra “labore" - trabalhar. Mas não. Estes montes ainda hoje são conhecidos também por "Leboreiro” ou “Leboredo” e o étimo certo, diz quem disto entende que não eu, é “leporarium momtem" ou seja "monte das lebres" ou dos coelhos. Se ainda os há por aí nenhum nos foi dado ver. Talvez a “fera do Castro Laboreiro", que, segundo a lenda, muita mortandade por aqui fez, seja a culpada.
À frente já se veem as instalações da antiga Casa Florestal das Veigas, em boa hora, ainda que tardia, transformada em “Área de Lazer” dedicada ao pedestrianismo e ciclismo de montanha. Mas que raio se passa aqui?... parece de novo abandonada!... será que está a funcionar?... foi inaugurada com “tanta pompa e circunstância” e agora está deserta e com aspeto descuidado!... ninguém por aqui há que possa esclarecer. Tentarei mais tarde saber junto do município de Melgaço.
Para trás ficou a dita Área de Laser e as interrogações que no meu espírito gerou. O caminho alagado que seguimos aqui, à beirinha da Corga do Carneiro, requer toda a nossa atenção. Alguém benevolente ou brincalhão, colocou pedras, distanciadas de um passo… laaargo, ao longo deste rio… quero dizer … caminho. E cá vamos nós equilibrando-nos. Qualquer descuido ou falta da necessária atenção leva a que dêmos de beber às botas. A minha companheira segue à frente em equilíbrio instável e eu, mauzinho, divirto-me a assistir ao espetáculo de equilibrismo. Foi longo e penoso mas vencido. Batamos palmas!...
Agora, num caminho mais enxuto, vamos subindo suavemente, apreciando a paisagem e antecipando imaginando o que iremos encontrar à medida que nos aproximamos da Portelinha. À frente, num outeiro e por entre a copa das árvores, um moinho de vento, decapitado e desasado, olha-nos complacentemente triste da sorte a que foi votado. Atravessamos a EN 202-3 e cá estamos. A Portelinha acoita-se e protege-se dos ventos de noroeste atrás do outeiro do moinho. Aqui uma casa típica enfeita as graníticas paredes com vasos de flores, estatuetas e … um par de botas que alguém já arrumou.
Por entre a beleza das giestas chegamos ao ponto mais alto desta etapa, quiçá deste caminho. 1051 metros marca o GPS do telemóvel. À esquerda elevam-se as fragas de Os Picos a 1275. Tão perto do Céu andamos. Começamos a descer por um caminho aprazível.
E cá vamos entre verdes fetos, giestas floridas e altos carvalhos, sentindo a serenidade matinal nos cambiantes das cores primaveris, dos sons… escuto… parece o cantar de um pisco… e é. Está ali empoleirado numa giesta, irrequieto, misturando a cor avermelhada do seu peito com o amarelo de oiro das flores.
De repente deu-me uma enorme vontade de blasfemar, gritar, esbofetear... há faixas plásticas penduradas nos arbustos!... e foi uma associação de Melgaço, supostamente promotora de vida com qualidade, que as andou a espalhar ao longo do percurso?!!!... Organiza-se um evento para promover a vida saudável e o usufruto daquilo que a natureza nos oferece e depois polui-se com plástico pendurado nas plantas?!!!... plástico?... onde tem esta gente a cabeça?... caramba!... vinha tão bem disposto e agora isto!…
O caminho reclama por atenção, sob pena de enterrarmos os pés na lama. Entre “em que pedra posso pôr o pé” e a raiva pela sementeira de plástico vai a minha cabeça alternando. Mas a atenção requerida ao caminho é mesmo muita e tenho mesmo que esquecer o resto. Nestas situações sou normalmente eu quem escolhe caminho mas agora é a Alice que vai ali à frente escolhendo a pedra onde pôr a bota antes de avançar. Se isto é assim quando há tanto tempo não chove nem imagino como será com tempo pluvioso.
Estamos a chegar à “raia húmida” do norte, definida pela Corga do Porto até aqui, pelo Rio Trancoso daqui até ao Rio Minho e deste até que desagua em frente a Caminha. Passamos o “marco de fronteira" Nº 2 mas vamos continuar do lado de cá mais alguns metros caminhando mesmo à beirinha de Espanha, na margem esquerda do Rio Trancoso que do lado de lá se chama Barxas. Fica para trás uma casa perdida neste ermo e caminhamos em carreiro antigo ladeado de muros altos e muita erva. Questiono-me se por aqui passariam os contrabandistas com as mulas carregadas passando o rio “a tralhão". Olho o chão e um brilho irisado prende-me o olhar. Baixo-me para apanhar o objeto brilhante que objeto não é. O que é?... tenho-o agora na mão e há muito que não via um. Vários são os que por aqui espalhados jazem. São besouros iridescentes. A causa desta mortandade não imagino. Será que andavam no contrabando e foram “caçados"?... Curioso procuro no motor de busca o nome do bichinho. Diz que deve tratar-se da espécie Trypocopris Pyrenaeus. Daqui a pouco já me não lembro. Deixá-lo!...
Ora aqui está o Rio Trancoso. Vamos mesmo atravessar a fronteira “a tralhão" porque ponte não há. O cuidado é muito porque a mochila dificulta o equilíbrio. No inverno deverá ser perigoso. Arriscada seria a vida no contrabando antigo. Recordo relatos sentidos de gentes da raia que viveram essa aventura. Falam de como enganavam os guardas e os carabineiros; falam dos valados, corgas e ribeiras que transpunham; falam das coisas que levavam às costas ou nos seirões das mulas. Mas o mais incrível que li é uma profissão de fé. Procuro o texto que guardei. Tenho-o aqui. Transcrevo: «Normalmente, íamos de manhã cedo. Antes de sair, o Niceto rezava os responsos de Santo António. Se não se enganasse a rezar, dizia que tudo ia correr bem, se, por acaso, se enganava dizia que era melhor não ir, que ia correr mal. Se mesmo assim ia, trocava constantemente de caminho ou carreiro».
E o responso rezava assim:
«Santo António de Lisboa / Em Lisboa nasceste / Em Pádua morreste. / No púlpito que o Senhor pregou / Também vós pregaste. / Indo pelo caminho / Perdeste o breviário / Jesus Cristo vo-lo encontrou / E três vezes chamou / António! António! António! / E três coisas te pediu, / Que o perdido fosse achado, / O esquecido lembrado / E o morto ressuscitado.»
Rezado está, sem enganos, e cá vamos com fé de que tudo bem irá correr.
O caminho “do contrabando" termina aqui junto deste painel que nos informa que agora, ou afinal, se chama “Ruta Transfronteiriza”.
Alguns quilómetros são passados desde que deixámos o “meu” caminho do contrabando. Passámos a Aldea da Azoreira e entrámos no asfalto de uma estrada de montanha em que a paisagem, por mais bonita que seja, tudo perde para o incómodo do caminhar em alcatrão. Paramos aqui porque algumas 'setas amarelas' tentam desviar-nos por estrada que desce à Lapela. O “Caminho Oficial” que tenho no GPS indica que devemos seguir em frente e uma pequena seta à nossa frente também. Avalio. Aumento a vista satélite ao máximo e não vejo possibilidade de outro caminho que não seja asfalto. Se algum caminho houvesse ver-se-ia, já que, salvo a ripícola das corgas e ribeiras, a vegetação por aqui é de mato baixo. Ora o desvio a Lapela implica uma descida de 120 metros seguida de uma subida de 100 metros para nos reencontrarmos com o traçado oficial. Seguindo em frente vamos praticamente pela mesma linha de cota.
Decisão tomada e aqui vamos nós entre a terra e o … sol. E quando o asfalto é a nossa passadeira e a ausência de trânsito permite, conversamos. Lado a lado, mão na mão, em sintonia de espírito vamos recordando os filhos e agora também o neto. Vivemos saudade à mistura com episódios de vida recém vividos e, recordando, revivemos. A ilusão de regressar ao passado vai enchendo a alma e esvaziando o tempo.
Finalmente uma povoação. Foram mais de seis quilómetros sem encontrar vivalma ou casa habitada. Entramos em San Xoán de Monterredondo. São meio dia e um quarto e não há vivalma na rua. Atravessamos a aldeia. Na paragem de autocarro há dois inquilinos… sim inquilinos porque há muito que aqui estarão. Não esperam transporte ainda que possa parecer. Num campo de milho úteis seriam, aqui mostram a possível inutilidade da estrutura. Será?... senão isso, que faz aqui um casal de bonecos, feitos na arte de espantalhos, vestidos com roupas labregas e em cadeiras descontraidamente sentados?... esperam o autocarro, claro!... se outros passageiros não há…
Por caminho de terra e entre pinheiros chegamos ao Monte de San Miguel. No cimo de um outeiro, junto a uns penedos, que daqui se veem, está uma singela capela de granito construída no século XVIII. Subir lá cima seria uma possibilidade não fora o adiantado da hora e não tivéssemos ainda metade do caminho a percorrer. A desculpa de chegarmos lá cima e, quase de certeza, encontrarmos a porta fechada levou a que não fizéssemos a subida até a este pequeno santuário que, como outros muitos, tem uma superstição associada. Diz-se que o santo deve “darlle a volta á pedra para que cambie o tempo”. E cá vou eu a matutar no verdadeiro sentido desta superstição. Que “tempo" será?... o meteorológico?... o “das vacas magras"?... o da guerra?... o da repressão?... tudo isto os galegos, como nós, “sentiram na pele".
Já vamos descendo por caminho de pinhal e eu, talvez arrependido, ainda vou lembrando o Monte de San Miguel de onde se diz avistar-se "dúas nacións, tres provincias e dez concellos". Mas a descida por caminho de terra, com muitas pedras propícias ao esbardalhanço, e uma escorregadela sem consequências acontecida, obrigam a que preste mais atenção ao chão do que à paisagem atual ou passada.
Atravessámos San Amaro sem que acrescente algo a estas memórias. Um pequeno atalho junto a um campo de futebol alivia as botas cansadas do asfalto. Foi breve. Vale-nos o pinhal que sombreia a estrada e é alívio para o cansaço que já se faz sentir e silencia-nos até o pensamento.
Um desvio à esquerda leva-nos para dentro de terreno com poucas árvores. Saímos de novo para a estrada e à frente surge uma velha ermida. É a Ermida da Portela. Em 1987, perante o deplorável estado de abandono em que se encontrava, o abade D. Manuel Alvarez decidiu proceder ao seu restauro. Não sei se antes já era dedicada a “Nosa Señora das Candelas" ou se foi o abade que decidiu alterar o orago. Certo é que se encontra na encruzilhada de velhos caminhos. Um de Portugal viria pela Pontebarxas, atravessava Padrenda, aqui passava para Pontedeva e, ou para Ourense se Arrieiros, ou para Santiago se Peregrinos, seguia. De facto já há tempo que calcorreamos caminhos de arrieiros e eu ainda os não havia referido por esquecido que tenho vindo. Daqui para a frente acompanhar-nos-á a sua memória.
O Alto do Lodairo olha-nos complacente perdoando a negação de subirmos ao Miradouro sobre o vale do Rio Minho… é tarde… vamos carregados… está muito calor… é uma subida de mais quase duzentos metros de desnível…
Perdoados ou não cá vamos seguindo o caminho de arrieiros lusos ou de lusos romeiros em direção a Pontedeva. Vestígios de caminhos e caminheiros de outrora poucos são mas o saber que aqui passavam, tocando mulas, carregando galinhas e ovos no tempo da guerra civil porque nada havia nesta mártir Galiza, máquinas de sulfatar porque tanta falta faziam às vinhas do Ribeiro e depois o famoso café sem necessário ser dizer porquê, enche-nos a imaginação e fazem que meditemos na dureza de tempos pretéritos.
Quase meia hora há que vimos por caminho de frondejante floresta. Um ou outro passarito esvoaça ligeiro sem que tempo tenhamos para a remota tentativa de o identificar. Caminhamos devagar usufruindo da frondosa frescura, pisando chão nu que nos veste de sorridente expressão as faces cansadas.
Chegamos a uma clara clareira e nela se encontra um humilde e deserto templo. É a Capela de San Xusto. O telhado é novo e as velhas pedras foram limpas. Entramos na galilé e espreitamos para o interior. A pequena nave está vazia, os santos emigraram e notícia deles não temos. Procuramos saber. Diz que «está siendo objeto de una rehabilitación integral por parte de la Consellería de Cultura, Educación y Ordenación Universitaria con el objetivo de acondicionarla y ponerla en valor en el conjunto del mirador. La propuesta de intervención, que se está llevando a cabo a instancias de la Corporación local, consiste "na recuperación da imaxe orixinal da capela e un mínimo acondicionamento da mesma"…». Quanto eu gostava de ter visto já essa tal “imaxe orixinal" mas o novo telhado deixa-me descrente.
Voltamos a caminhar pela floresta mas rápido chegamos ao Polígono Industrial de Trado. À beira do precipício escavado, contornamos a zona industrial e descemos para a ponte sobre o Rio Deva, muito próximo de onde se vai encontrar com o Minho.
Enfrentámos o perigo da OU-801 durante quinhentos metros e voltamos agora à floresta. “A barriga já dá horas”. Paramos um pouco para comer o restinho que na mochila trazemos. A vegetação ripícola que nos refresca o caminho indicia a existência de um curso de água. Atravessamo-lo agora e o caminho torna-se belíssimo. De um e outro lado as paredes musgosas foram sendo, ao longo dos séculos, escavadas num carvalhal denso por onde a luz do sol penetra aqui e ali por entre a folhagem. Os terrenos agrícolas que nos ladeiam agora, indiciam que nos estamos a aproximar de uma povoação. Vilanova da Barca é uma pequena aldeia com meia dúzia de casas e, segundo os sensos, em 2011 tinha 13 homens e 9 mulheres. História que a referisse não encontrei mas o nome e a proximidade do Rio Minho traz-nos à memória tantas outras ribeirinhas povoações que, outrora, além do cultivo das courelas, da pesca e da moagem de cereais nos moinhos de água, serviam os transeuntes, encurtando distâncias, com barcas que atravessavam os rios em locais onde ponte não havia. Enquanto entre antigos e altos muros caminhamos, imagino cena de “mula teimosa" que, na barca não querendo entrar, pela arreata a puxaria o arrieiro com força e blasfémias enquanto nos quartos traseiros a empurrava o barqueiro sujeito a levar um coice e cair à água. Sorrio divertido e esqueço por momentos quão cansado vou. Agora a vista de pequena capela, não muito antiga, distrai-me o espírito. Tem porta de chapa bem trancada, não vá o diabo entrar e incomodar os santos que no interior deverão estar mas que, espreitando pelos janeletes gradeados, se não veem por pouca ser a luz que entra. Se o diabo não entra também os santos não saem. Deixemos que em paz descansem. Penso agora: se devoto fora e mais fé tivera, uma prece teria feito. Será que mais me alegraria a alma?...
Caminhamos muito perto do Río Miño mas a dormente floresta, por onde o caminho assinalado nos leva, não deixa que o miremos. Nada se houve senão o ruído seco dos nossos passos. Chegamos a uma clareira e desaguamos nossos olhos no rio. Quedamo-nos um pouco bebendo a paisagem. O adiantado da hora obriga a que continuemos. Desviamo-nos um pouco do caminho e entramos num antigo edifício recém-recuperado. No interior há uma moderna instalação de tratamento para os pés. Chama-se por aqui “pediluvio". Junto está um antigo lugar onde terá funcionado um equipamento equiparado mas simples, ao jeito de outros tempos. Estas instalações deverão ser anteriores ao belíssimo balneário de 1937, obra do arquiteto José Lago Loureiro, esquecido após a construção da barragem que alagou a fonte que o alimentava. Foi recentemente recuperado e funciona como museu e um bom restaurante debruçado sobre o Miño.
Ainda que pertencendo à Comarca de Ribeiro que pelos vinhos é famosa, a fama de Cortegada vem da água. Três fontes seriam remédio para as maleitas de quem as conhecia, em tempos que o conhecimento era passado de boca ou dele se guardava segredo.
A primeira referência às águas de Cortegada aparece num documento de 1497, ano em que o mosteiro de Celanova “afora un monte y los baños de Cortegada".
Quase três séculos depois, em 1764, escreve don Pedro Gómez y Bedoya (catedrático de cirugia y anatomia de la Universidad de Santiago y médico del Cabildo Catedralicio): « A la distancia de un largo tiro de piedra de esta está de la primera fuente mineral, a quien antiguamente llamaban de la Sarna, y al presente de la Piedra. El auga es clara, con olor y sabor de Azufre; bañando en ella una moneda de Cobre, toma color azul, y si es de Plata, le adquiere azul muy obículo.
Desde dicha fuente de Piedra en un campo medianamente llano a 95 pasos se encuentra la que llaman Baño do Campo. Su manantial es a borbollones. A 30 pasos de esta, está la fuente llamada de los Ojos.»
Entre outras, vem-me à memória uma curiosidade que encontrei em outro documento. Procuro entre as minhas notas. Cá está. Trata-se do “Tratado completo de las fuentes minerales de España", todo ele muito interessante mas transcrevo apenas o que memorizado tinha: « Dícese que el agua de las tres fuentes era fría antes del terremoto de 1755.» ora, este terramoto ficou conhecido mundialmente como o “Terramoto de Lisboa de 1755”.
Com esta conversa toda, sem parado termos, já entrámos em Cortegada. Para trás ficou o moderno e, dizem, muito funcional edifício dos “Baños do Monte”. Perto, além do belíssimo edifício do Balneário de 1937, existe um percurso pedestre à beira do Rio Minho que, a avaliar pelo pouco que pudemos ver, nos deixa uma vontade grande de aqui voltar.
Chegamos ao destino desta jornada. Num muro que precede o edifício do século XVIII está uma roda de carro de bois que diz “Hotel Rural Casa do Conde”. A porta está fechada. Tocamos à campainha e, como que por magia e sem ruído, a porta abriu-se. Entramos. Na receção não está ninguém. Em cima do balcão duas chaves numeradas e nominadas. Numa o meu nome. Pressuponho que seja a chave do quarto que nos foi destinado para passarmos a noite. Estrategicamente colocados existem equipamentos de museu etnográfico na receção e na sala ao lado. Deixamos para mais tarde uma mais demorada apreciação destes objetos que ainda povoam as nossas recordações.
Subimos. O quarto 101 está mesmo aqui em frente às escadas. A chave abre. Entramos. No quarto continua o museu. A cama de ferro é do início do século passado e sobre uma antiga cómoda está uma maquina de escrever de marca Mercedes. Estas máquinas terão sido produzidas na Büromaschinen-Werke a.g. na Alemanha por volta de 1930.
Embasbacados ficamos a apreciar “museu”, decorado com gosto, onde vamos ficar esta noite, e esquecemo-nos que as mochilas ainda pesam nas costas. Pousamo-las e vamos já já tomar um merecido duche. O resto logo se vê.
Gratias Domine.
Vou até ao miradouro. Olho o vale que se estende à minha frente até ao Mareco e por onde, penosamente afrontados pelo calor, ontem subimos. À esquerda, lá em cima, está o castelo. Ontem ainda fomos até lá. No caminho encontrámo-nos com outro novíssimo monumento. Este é dedicado a quem dedicado é: o Cão da raça Castro Laboreiro. O orgulho que os castrejos têm no “seu Cão” consubstancia-se no Concurso de Cães de Castro Laboreiro que há mais de cem anos se realiza, antigamente em outubro, agora em meados de agosto. E, para provar esse orgulho, aqui está este monumento. Não digo que gosto, tão pouco que desgosto, mas um cão que tem tantas características que o diferenciam porquê reduzir a representação a uma cabeça?... e porquê prateada?... acredito que haja explicação, talvez até seja meu defeito de mau entendedor de arte, mas não aprecio o que não entendo ou que, mesmo não entendendo, me não sensibiliza. Bem, talvez seja instangramável. «Então, vamos lá, não percamos a oportunidade de aqui tirar uma “selfie”». Dissemos e concretizámos mas ficou tão mazinha…
Depois subi lá acima. Nunca o tinha feito antes. À noite li a história deste castelo. Valeu a pena.
Demos uma volta à aldeia. Recordo ter lido que, segundo uma antiga lenda, terá sido no final do sec. X que São Rosendo de Celanova fundou a vila e a sua igreja. O primeiro templo terá sido românico. Olhei-a para tentar encontrar vestígios dessa época, mas nada encontrei, talvez seja inépcia minha porque me recordo de ter lido que esses vestígios ainda são visíveis. A primeira referência à igreja de Castro Laboreiro aparece nas inquirições de 1258, no reinado de D. Afonso III. Em 1641 os espanhóis incendiaram-na mas terá sido rapidamente reconstruída. Será esse o templo onde decidimos entrar e que foi de invocação da Visitação de Santa Isabel e hoje é a Igreja de Santa Maria da Visitação. Entrámos porque em outra visita não houvéramos oportunidade de o fazer. O templo acolheu-nos num silêncio e agradável obscuridade. Uma breve oração elevou-nos o espírito e predispôs-nos para a observação do interior. Na lateral do lado esquerdo encontrámos uma porta aberta para um pequeno museu. Ficámos encantados e mais me vedo eu de dizer. Uma descrição do templo e sua história pode encontrar-se em monumentos.gov.pt já que está classificada como IIP.
Agora, enquanto percorremos a N202-3, olvidando o que construído para aqui está, regressa o pensamento à memória das que o “monumento à Mulher Castreja” inspiraram.
No inverno, difusa nas faldas baixas dos montes, a mulher castreja, coberta de burel escuro, capa prá cabeça, de outro agasalho não precisando, pastoreia o gado na inverneira. No verão, com seu fiel amigo, o Castro Laboreiro, e gado seu e de vizinhos campeia por campinas, chãs e lameiras, brandas onde os rios nascem e o céu se funde. Guarda o gado e o gado guarda-a a ela. Fala a cada rês como fala com o seu cão. Conhecem-lhe os segredos porque segredos não tem. Mapeiam-lhe os olhos todos os carreiros que riscam os montes, conhece-os por nomes herdados de tempos que o tempo há muito esqueceu.
Pensei no passado e redigi no presente porque ainda as há. Pouquinhas, mesmo pouquinhas e de avançada idade. «Aqui?... Duas ó três, senhor. Disso nã vai além. Dantes éramos muuuntas!... desde pequenitas qu'íamos pró monte». Sinais de tempos que o tempo dilui na memória das gentes. "Pequenitas" poucas há por aqui porque aos filhos se procurou dar menos sacrificada vida. O gado continua a subir aos montes mas os métodos e motivação são outros. Que direito temos para desejarmos que de outro jeito fosse?... Ficam os monumentos, memória que hoje ainda são e amanhã talvez pontos de interrogação sejam.
Não tendo seguido pelo sinalizado percurso e tão distraídos vínhamos que não fora terem estas Alminhas, esquecidas entre ervas, a nossa atenção requerido e passaríamos além do ponto de saída da N202-3. Descuidadas jazem estas alminhas, qual lápide de tumba de família antiga. Aqui abandonadas já se não lembram de ver os homens descobrirem-se quando passavam nem escutar o bichanar rezado das mulheres persignando-se vezes sem conta à sua frente. Se Purgatório existe encontram-se assim votadas ao abandono as almas que este simples e modesto templo procurava redimir.
Por rua de novas construções saímos da aldeia. Subimos um niquito por caminho de terra batida, passamos por um marco cruciforme de que não temos nota ou memorando e aqui vamos pela veiga adiante. Encontramo-nos com a Ponte das Veigas no Ribeiro do Porto Seco que seco está justificando o nome. Por aqui passava o antigo caminho que de Melgaço vinha a Castro Laboreiro e o tempo foi esquecendo. Recordamos nós a antiga superstição enraizada nas gentes da terra que, junto a esta ponte, as mulheres prenhes trazia para que batizados fossem os filhos que ainda dentro de si cresciam. Ao primeiro viandante que aqui passasse lhe pediam que água do ribeiro vertessem sobre seus ventres, garantindo deste modo que os nascituros de boa saúde haveriam de nascer.
Continuamos pela veiga adiante olhando ora os penedos da Franqueira ora os picos do Laboreiro para lá deste plano que nos atravessa o olhar. Medito no orónimo. A primeira coisa que me assoma à ideia é associar Laboreiro à palavra “labore" - trabalhar. Mas não. Estes montes ainda hoje são conhecidos também por "Leboreiro” ou “Leboredo” e o étimo certo, diz quem disto entende que não eu, é “leporarium momtem" ou seja "monte das lebres" ou dos coelhos. Se ainda os há por aí nenhum nos foi dado ver. Talvez a “fera do Castro Laboreiro", que, segundo a lenda, muita mortandade por aqui fez, seja a culpada.
À frente já se veem as instalações da antiga Casa Florestal das Veigas, em boa hora, ainda que tardia, transformada em “Área de Lazer” dedicada ao pedestrianismo e ciclismo de montanha. Mas que raio se passa aqui?... parece de novo abandonada!... será que está a funcionar?... foi inaugurada com “tanta pompa e circunstância” e agora está deserta e com aspeto descuidado!... ninguém por aqui há que possa esclarecer. Tentarei mais tarde saber junto do município de Melgaço.
Para trás ficou a dita Área de Laser e as interrogações que no meu espírito gerou. O caminho alagado que seguimos aqui, à beirinha da Corga do Carneiro, requer toda a nossa atenção. Alguém benevolente ou brincalhão, colocou pedras, distanciadas de um passo… laaargo, ao longo deste rio… quero dizer … caminho. E cá vamos nós equilibrando-nos. Qualquer descuido ou falta da necessária atenção leva a que dêmos de beber às botas. A minha companheira segue à frente em equilíbrio instável e eu, mauzinho, divirto-me a assistir ao espetáculo de equilibrismo. Foi longo e penoso mas vencido. Batamos palmas!...
Agora, num caminho mais enxuto, vamos subindo suavemente, apreciando a paisagem e antecipando imaginando o que iremos encontrar à medida que nos aproximamos da Portelinha. À frente, num outeiro e por entre a copa das árvores, um moinho de vento, decapitado e desasado, olha-nos complacentemente triste da sorte a que foi votado. Atravessamos a EN 202-3 e cá estamos. A Portelinha acoita-se e protege-se dos ventos de noroeste atrás do outeiro do moinho. Aqui uma casa típica enfeita as graníticas paredes com vasos de flores, estatuetas e … um par de botas que alguém já arrumou.
Por entre a beleza das giestas chegamos ao ponto mais alto desta etapa, quiçá deste caminho. 1051 metros marca o GPS do telemóvel. À esquerda elevam-se as fragas de Os Picos a 1275. Tão perto do Céu andamos. Começamos a descer por um caminho aprazível.
E cá vamos entre verdes fetos, giestas floridas e altos carvalhos, sentindo a serenidade matinal nos cambiantes das cores primaveris, dos sons… escuto… parece o cantar de um pisco… e é. Está ali empoleirado numa giesta, irrequieto, misturando a cor avermelhada do seu peito com o amarelo de oiro das flores.
De repente deu-me uma enorme vontade de blasfemar, gritar, esbofetear... há faixas plásticas penduradas nos arbustos!... e foi uma associação de Melgaço, supostamente promotora de vida com qualidade, que as andou a espalhar ao longo do percurso?!!!... Organiza-se um evento para promover a vida saudável e o usufruto daquilo que a natureza nos oferece e depois polui-se com plástico pendurado nas plantas?!!!... plástico?... onde tem esta gente a cabeça?... caramba!... vinha tão bem disposto e agora isto!…
O caminho reclama por atenção, sob pena de enterrarmos os pés na lama. Entre “em que pedra posso pôr o pé” e a raiva pela sementeira de plástico vai a minha cabeça alternando. Mas a atenção requerida ao caminho é mesmo muita e tenho mesmo que esquecer o resto. Nestas situações sou normalmente eu quem escolhe caminho mas agora é a Alice que vai ali à frente escolhendo a pedra onde pôr a bota antes de avançar. Se isto é assim quando há tanto tempo não chove nem imagino como será com tempo pluvioso.
Estamos a chegar à “raia húmida” do norte, definida pela Corga do Porto até aqui, pelo Rio Trancoso daqui até ao Rio Minho e deste até que desagua em frente a Caminha. Passamos o “marco de fronteira" Nº 2 mas vamos continuar do lado de cá mais alguns metros caminhando mesmo à beirinha de Espanha, na margem esquerda do Rio Trancoso que do lado de lá se chama Barxas. Fica para trás uma casa perdida neste ermo e caminhamos em carreiro antigo ladeado de muros altos e muita erva. Questiono-me se por aqui passariam os contrabandistas com as mulas carregadas passando o rio “a tralhão". Olho o chão e um brilho irisado prende-me o olhar. Baixo-me para apanhar o objeto brilhante que objeto não é. O que é?... tenho-o agora na mão e há muito que não via um. Vários são os que por aqui espalhados jazem. São besouros iridescentes. A causa desta mortandade não imagino. Será que andavam no contrabando e foram “caçados"?... Curioso procuro no motor de busca o nome do bichinho. Diz que deve tratar-se da espécie Trypocopris Pyrenaeus. Daqui a pouco já me não lembro. Deixá-lo!...
Ora aqui está o Rio Trancoso. Vamos mesmo atravessar a fronteira “a tralhão" porque ponte não há. O cuidado é muito porque a mochila dificulta o equilíbrio. No inverno deverá ser perigoso. Arriscada seria a vida no contrabando antigo. Recordo relatos sentidos de gentes da raia que viveram essa aventura. Falam de como enganavam os guardas e os carabineiros; falam dos valados, corgas e ribeiras que transpunham; falam das coisas que levavam às costas ou nos seirões das mulas. Mas o mais incrível que li é uma profissão de fé. Procuro o texto que guardei. Tenho-o aqui. Transcrevo: «Normalmente, íamos de manhã cedo. Antes de sair, o Niceto rezava os responsos de Santo António. Se não se enganasse a rezar, dizia que tudo ia correr bem, se, por acaso, se enganava dizia que era melhor não ir, que ia correr mal. Se mesmo assim ia, trocava constantemente de caminho ou carreiro».
E o responso rezava assim:
«Santo António de Lisboa / Em Lisboa nasceste / Em Pádua morreste. / No púlpito que o Senhor pregou / Também vós pregaste. / Indo pelo caminho / Perdeste o breviário / Jesus Cristo vo-lo encontrou / E três vezes chamou / António! António! António! / E três coisas te pediu, / Que o perdido fosse achado, / O esquecido lembrado / E o morto ressuscitado.»
Rezado está, sem enganos, e cá vamos com fé de que tudo bem irá correr.
O caminho “do contrabando" termina aqui junto deste painel que nos informa que agora, ou afinal, se chama “Ruta Transfronteiriza”.
Alguns quilómetros são passados desde que deixámos o “meu” caminho do contrabando. Passámos a Aldea da Azoreira e entrámos no asfalto de uma estrada de montanha em que a paisagem, por mais bonita que seja, tudo perde para o incómodo do caminhar em alcatrão. Paramos aqui porque algumas 'setas amarelas' tentam desviar-nos por estrada que desce à Lapela. O “Caminho Oficial” que tenho no GPS indica que devemos seguir em frente e uma pequena seta à nossa frente também. Avalio. Aumento a vista satélite ao máximo e não vejo possibilidade de outro caminho que não seja asfalto. Se algum caminho houvesse ver-se-ia, já que, salvo a ripícola das corgas e ribeiras, a vegetação por aqui é de mato baixo. Ora o desvio a Lapela implica uma descida de 120 metros seguida de uma subida de 100 metros para nos reencontrarmos com o traçado oficial. Seguindo em frente vamos praticamente pela mesma linha de cota.
Decisão tomada e aqui vamos nós entre a terra e o … sol. E quando o asfalto é a nossa passadeira e a ausência de trânsito permite, conversamos. Lado a lado, mão na mão, em sintonia de espírito vamos recordando os filhos e agora também o neto. Vivemos saudade à mistura com episódios de vida recém vividos e, recordando, revivemos. A ilusão de regressar ao passado vai enchendo a alma e esvaziando o tempo.
Finalmente uma povoação. Foram mais de seis quilómetros sem encontrar vivalma ou casa habitada. Entramos em San Xoán de Monterredondo. São meio dia e um quarto e não há vivalma na rua. Atravessamos a aldeia. Na paragem de autocarro há dois inquilinos… sim inquilinos porque há muito que aqui estarão. Não esperam transporte ainda que possa parecer. Num campo de milho úteis seriam, aqui mostram a possível inutilidade da estrutura. Será?... senão isso, que faz aqui um casal de bonecos, feitos na arte de espantalhos, vestidos com roupas labregas e em cadeiras descontraidamente sentados?... esperam o autocarro, claro!... se outros passageiros não há…
Por caminho de terra e entre pinheiros chegamos ao Monte de San Miguel. No cimo de um outeiro, junto a uns penedos, que daqui se veem, está uma singela capela de granito construída no século XVIII. Subir lá cima seria uma possibilidade não fora o adiantado da hora e não tivéssemos ainda metade do caminho a percorrer. A desculpa de chegarmos lá cima e, quase de certeza, encontrarmos a porta fechada levou a que não fizéssemos a subida até a este pequeno santuário que, como outros muitos, tem uma superstição associada. Diz-se que o santo deve “darlle a volta á pedra para que cambie o tempo”. E cá vou eu a matutar no verdadeiro sentido desta superstição. Que “tempo" será?... o meteorológico?... o “das vacas magras"?... o da guerra?... o da repressão?... tudo isto os galegos, como nós, “sentiram na pele".
Já vamos descendo por caminho de pinhal e eu, talvez arrependido, ainda vou lembrando o Monte de San Miguel de onde se diz avistar-se "dúas nacións, tres provincias e dez concellos". Mas a descida por caminho de terra, com muitas pedras propícias ao esbardalhanço, e uma escorregadela sem consequências acontecida, obrigam a que preste mais atenção ao chão do que à paisagem atual ou passada.
Atravessámos San Amaro sem que acrescente algo a estas memórias. Um pequeno atalho junto a um campo de futebol alivia as botas cansadas do asfalto. Foi breve. Vale-nos o pinhal que sombreia a estrada e é alívio para o cansaço que já se faz sentir e silencia-nos até o pensamento.
Um desvio à esquerda leva-nos para dentro de terreno com poucas árvores. Saímos de novo para a estrada e à frente surge uma velha ermida. É a Ermida da Portela. Em 1987, perante o deplorável estado de abandono em que se encontrava, o abade D. Manuel Alvarez decidiu proceder ao seu restauro. Não sei se antes já era dedicada a “Nosa Señora das Candelas" ou se foi o abade que decidiu alterar o orago. Certo é que se encontra na encruzilhada de velhos caminhos. Um de Portugal viria pela Pontebarxas, atravessava Padrenda, aqui passava para Pontedeva e, ou para Ourense se Arrieiros, ou para Santiago se Peregrinos, seguia. De facto já há tempo que calcorreamos caminhos de arrieiros e eu ainda os não havia referido por esquecido que tenho vindo. Daqui para a frente acompanhar-nos-á a sua memória.
O Alto do Lodairo olha-nos complacente perdoando a negação de subirmos ao Miradouro sobre o vale do Rio Minho… é tarde… vamos carregados… está muito calor… é uma subida de mais quase duzentos metros de desnível…
Perdoados ou não cá vamos seguindo o caminho de arrieiros lusos ou de lusos romeiros em direção a Pontedeva. Vestígios de caminhos e caminheiros de outrora poucos são mas o saber que aqui passavam, tocando mulas, carregando galinhas e ovos no tempo da guerra civil porque nada havia nesta mártir Galiza, máquinas de sulfatar porque tanta falta faziam às vinhas do Ribeiro e depois o famoso café sem necessário ser dizer porquê, enche-nos a imaginação e fazem que meditemos na dureza de tempos pretéritos.
Quase meia hora há que vimos por caminho de frondejante floresta. Um ou outro passarito esvoaça ligeiro sem que tempo tenhamos para a remota tentativa de o identificar. Caminhamos devagar usufruindo da frondosa frescura, pisando chão nu que nos veste de sorridente expressão as faces cansadas.
Chegamos a uma clara clareira e nela se encontra um humilde e deserto templo. É a Capela de San Xusto. O telhado é novo e as velhas pedras foram limpas. Entramos na galilé e espreitamos para o interior. A pequena nave está vazia, os santos emigraram e notícia deles não temos. Procuramos saber. Diz que «está siendo objeto de una rehabilitación integral por parte de la Consellería de Cultura, Educación y Ordenación Universitaria con el objetivo de acondicionarla y ponerla en valor en el conjunto del mirador. La propuesta de intervención, que se está llevando a cabo a instancias de la Corporación local, consiste "na recuperación da imaxe orixinal da capela e un mínimo acondicionamento da mesma"…». Quanto eu gostava de ter visto já essa tal “imaxe orixinal" mas o novo telhado deixa-me descrente.
Voltamos a caminhar pela floresta mas rápido chegamos ao Polígono Industrial de Trado. À beira do precipício escavado, contornamos a zona industrial e descemos para a ponte sobre o Rio Deva, muito próximo de onde se vai encontrar com o Minho.
Enfrentámos o perigo da OU-801 durante quinhentos metros e voltamos agora à floresta. “A barriga já dá horas”. Paramos um pouco para comer o restinho que na mochila trazemos. A vegetação ripícola que nos refresca o caminho indicia a existência de um curso de água. Atravessamo-lo agora e o caminho torna-se belíssimo. De um e outro lado as paredes musgosas foram sendo, ao longo dos séculos, escavadas num carvalhal denso por onde a luz do sol penetra aqui e ali por entre a folhagem. Os terrenos agrícolas que nos ladeiam agora, indiciam que nos estamos a aproximar de uma povoação. Vilanova da Barca é uma pequena aldeia com meia dúzia de casas e, segundo os sensos, em 2011 tinha 13 homens e 9 mulheres. História que a referisse não encontrei mas o nome e a proximidade do Rio Minho traz-nos à memória tantas outras ribeirinhas povoações que, outrora, além do cultivo das courelas, da pesca e da moagem de cereais nos moinhos de água, serviam os transeuntes, encurtando distâncias, com barcas que atravessavam os rios em locais onde ponte não havia. Enquanto entre antigos e altos muros caminhamos, imagino cena de “mula teimosa" que, na barca não querendo entrar, pela arreata a puxaria o arrieiro com força e blasfémias enquanto nos quartos traseiros a empurrava o barqueiro sujeito a levar um coice e cair à água. Sorrio divertido e esqueço por momentos quão cansado vou. Agora a vista de pequena capela, não muito antiga, distrai-me o espírito. Tem porta de chapa bem trancada, não vá o diabo entrar e incomodar os santos que no interior deverão estar mas que, espreitando pelos janeletes gradeados, se não veem por pouca ser a luz que entra. Se o diabo não entra também os santos não saem. Deixemos que em paz descansem. Penso agora: se devoto fora e mais fé tivera, uma prece teria feito. Será que mais me alegraria a alma?...
Caminhamos muito perto do Río Miño mas a dormente floresta, por onde o caminho assinalado nos leva, não deixa que o miremos. Nada se houve senão o ruído seco dos nossos passos. Chegamos a uma clareira e desaguamos nossos olhos no rio. Quedamo-nos um pouco bebendo a paisagem. O adiantado da hora obriga a que continuemos. Desviamo-nos um pouco do caminho e entramos num antigo edifício recém-recuperado. No interior há uma moderna instalação de tratamento para os pés. Chama-se por aqui “pediluvio". Junto está um antigo lugar onde terá funcionado um equipamento equiparado mas simples, ao jeito de outros tempos. Estas instalações deverão ser anteriores ao belíssimo balneário de 1937, obra do arquiteto José Lago Loureiro, esquecido após a construção da barragem que alagou a fonte que o alimentava. Foi recentemente recuperado e funciona como museu e um bom restaurante debruçado sobre o Miño.
Ainda que pertencendo à Comarca de Ribeiro que pelos vinhos é famosa, a fama de Cortegada vem da água. Três fontes seriam remédio para as maleitas de quem as conhecia, em tempos que o conhecimento era passado de boca ou dele se guardava segredo.
A primeira referência às águas de Cortegada aparece num documento de 1497, ano em que o mosteiro de Celanova “afora un monte y los baños de Cortegada".
Quase três séculos depois, em 1764, escreve don Pedro Gómez y Bedoya (catedrático de cirugia y anatomia de la Universidad de Santiago y médico del Cabildo Catedralicio): « A la distancia de un largo tiro de piedra de esta está de la primera fuente mineral, a quien antiguamente llamaban de la Sarna, y al presente de la Piedra. El auga es clara, con olor y sabor de Azufre; bañando en ella una moneda de Cobre, toma color azul, y si es de Plata, le adquiere azul muy obículo.
Desde dicha fuente de Piedra en un campo medianamente llano a 95 pasos se encuentra la que llaman Baño do Campo. Su manantial es a borbollones. A 30 pasos de esta, está la fuente llamada de los Ojos.»
Entre outras, vem-me à memória uma curiosidade que encontrei em outro documento. Procuro entre as minhas notas. Cá está. Trata-se do “Tratado completo de las fuentes minerales de España", todo ele muito interessante mas transcrevo apenas o que memorizado tinha: « Dícese que el agua de las tres fuentes era fría antes del terremoto de 1755.» ora, este terramoto ficou conhecido mundialmente como o “Terramoto de Lisboa de 1755”.
Com esta conversa toda, sem parado termos, já entrámos em Cortegada. Para trás ficou o moderno e, dizem, muito funcional edifício dos “Baños do Monte”. Perto, além do belíssimo edifício do Balneário de 1937, existe um percurso pedestre à beira do Rio Minho que, a avaliar pelo pouco que pudemos ver, nos deixa uma vontade grande de aqui voltar.
Chegamos ao destino desta jornada. Num muro que precede o edifício do século XVIII está uma roda de carro de bois que diz “Hotel Rural Casa do Conde”. A porta está fechada. Tocamos à campainha e, como que por magia e sem ruído, a porta abriu-se. Entramos. Na receção não está ninguém. Em cima do balcão duas chaves numeradas e nominadas. Numa o meu nome. Pressuponho que seja a chave do quarto que nos foi destinado para passarmos a noite. Estrategicamente colocados existem equipamentos de museu etnográfico na receção e na sala ao lado. Deixamos para mais tarde uma mais demorada apreciação destes objetos que ainda povoam as nossas recordações.
Subimos. O quarto 101 está mesmo aqui em frente às escadas. A chave abre. Entramos. No quarto continua o museu. A cama de ferro é do início do século passado e sobre uma antiga cómoda está uma maquina de escrever de marca Mercedes. Estas máquinas terão sido produzidas na Büromaschinen-Werke a.g. na Alemanha por volta de 1930.
Embasbacados ficamos a apreciar “museu”, decorado com gosto, onde vamos ficar esta noite, e esquecemo-nos que as mochilas ainda pesam nas costas. Pousamo-las e vamos já já tomar um merecido duche. O resto logo se vê.
Gratias Domine.
Waypoints
Photo
408 ft
A capela de Vilanova da Barca fechadinha com porta de chapa, não vão os diabos entrar e incomodar os santos
You can add a comment or review this trail
Comments